Do site Fronteiras do Pensamento
"Sócrates, além da figura do questionador, exemplifica também a coragem que é necessária para defender ideias que outras pessoas pensam que não devem ser defendidas, talvez simplesmente por medo de buscar a reflexão." - Simon Blackburn
Simon Blackburn, filósofo britânico, veio ao Fronteiras do Pensamento debater o tema As grandes questões da filosofia. Neste excerto de sua conferência ao seminário internacional, ele vai à raiz da filosofia para tratar de conceitos fundamentais à civilização: reflexão, razão, liberdade e educação.A conferência de Blackburn está contida, na íntegra, no livro Pensar a Filosofia, à venda no site da Arquipélago Editorial.
A filosofia é, segundo creio, aquilo que surge sempre que há reflexão, e seres humanos são necessariamente reflexivos, nós somos conscientes de nós mesmos. Com efeito, temos ideias, mas em seguida pensamos sobre as ideias que temos; usamos palavras, mas nos preocupamos com o que elas significam; valemo-nos de formas de argumento e de modos de formar confiança em ações, em escolhas e em expectativas, mas depois questionamos a correção e a autoridade desses modos de formar confiança. Formulamos questões como: de onde eles vêm? Quais são as alternativas a eles? Eles nos fornecem a verdade? Eles nos conduzem a boas coisas e nos afastam das ruins?
Desde Platão e Aristóteles, desde a tradição clássica grega, o espírito da filosofia tem sido o espírito da reflexão, isso é claramente personificado na simbólica figura de Sócrates tal como desenhada por Platão, a figura do paciente questionador que sabe apenas que nada sabe. Esse é um tipo de imagem da vida filosófica e creio que não seja uma imagem ruim. Mas Sócrates, além da figura do questionador, exemplifica também a coragem que é necessária para defender ideias que outras pessoas pensam que não devem ser defendidas, talvez simplesmente por medo de buscar a reflexão.
Com efeito, quando se reflete, minam-se certezas que poderiam ser necessárias, seja para a igreja, seja para o Estado; assim, há um longo histórico de perseguição à filosofia, e de fato uma das coisas que um regime totalitário busca fazer é trancar ou executar todos os filósofos, exceto, é claro, aqueles que fornecem as palavras que legitimam o regime, a ideologia ou o espírito religioso.
Cabe notar que a reflexão não precisa conduzir ao ceticismo. Ela pode também aumentar nossa confiança; pode, por exemplo, conduzir-nos à confiança na existência de algo que merece ser chamado de liberdade.
A liberdade, segundo creio, reside precisamente na capacidade de pensar duas vezes e de não fazer a primeira coisa que vem à cabeça. Nós manifestamos essa capacidade na nossa habilidade de responder a razões, de incorporá-las ao nosso comportamento, no poder de escutar uns aos outros, de aceitar argumentos, de ser dissuadidos de cursos de ação por pressão dialógica e assim por diante.
Até onde se sabe, animais são incapazes de fazer essas coisas. Trata-se todavia de um ponto controverso, pois pode-se argumentar que cachorros e outros animais superiores pensam. Eles podem eventualmente formular pensamentos do tipo "eu quero aquele osso", e em seguida, "oh, meu dono me disse para não fazê-lo, então vou ficar aqui sentado". Talvez cachorros sejam de fato capazes de autocontrole e talvez pensem, mas meu ponto é que eles não são capazes de muita reflexão, sobre suas vidas, sobre seus pensamentos. Essa é uma capacidade que nos é peculiar.
Fiquei contente de saber que o Brasil é um dos poucos países no mundo em que a filosofia faz parte do currículo escolar obrigatório. Crianças são filósofos naturais. Todavia esse talento é, com frequência, inibido nelas por nós adultos, que dissemos para elas se calarem, para não fazerem certas perguntas e para não se preocuparem com certas coisas. Por conseguinte, as crianças acabam aprendendo a seguir o currículo obrigatório sem fazer perguntas, a resolver as equações e seguir em frente.
Essa supressão do questionamento e do espírito reflexivo é fatal para a educação. Esse ponto pode ser ilustrado por um exemplo tirado da educação da minha filha. Esta é uma história verídica. Minha filha frequentou escolas muito boas e caras em Oxford quando eu ali lecionava.
Um dia, quando tinha por volta de 15 anos, ela se aproximou de mim e disse: "eu cansei de física, eu odeio física, eu odeio ciência, eu não vou mais estudar ciência", e respondi: "mas o que está acontecendo?", e ela: "eu não entendo nada".
O que tinha acontecido na verdade é que eles precisavam resolver um problema relacionado à oscilação do pêndulo; eles deviam resolver uma equação sobre a velocidade do pêndulo na ponta de baixo usando uma equação que envolvia energia potencial, no topo do pêndulo, e energia cinética, na ponta de baixo do pêndulo. É um cálculo bastante simples.
Eu disse: "está bem, e o que você não entendeu?". E ela: "eu não entendi o que é essa coisa que ele chama de energia; o pêndulo no topo não tem energia, ele não está fazendo nada, ele está só ali parado, então por que deveríamos dizer que ele tem energia e que tem energia que se traduz em velocidade?". Ao que respondi: "e você perguntou isso para o professor?", e minha filha disse que sim, que tinha perguntado para o professor, e o que o professor tinha respondido: "resolva a equação e não faça perguntas".
O resultado do diálogo vocês já conhecem, minha filha chegou em casa e disse "eu cansei de ciência, não estudo mais isso", e de fato foi o que ela fez, desistiu de ciência pouco tempo depois.
Eis uma ilustração de como não lecionar, de como não educar pessoas. Pode até ser que as colegas de classe da minha filha que resolveram a equação tenham ido para a universidade e tenham se tornado muito boas em todo tipo de coisa; não nego que essa seja uma maneira de capacitar pessoas a exibir certas habilidades.
Tais pessoas podem certamente vir a se tornar engenheiros, doutores ou algo assim, mas isso não é uma educação, isso não aumenta nosso entendimento das engrenagens do mundo.
"Sócrates, além da figura do questionador, exemplifica também a coragem que é necessária para defender ideias que outras pessoas pensam que não devem ser defendidas, talvez simplesmente por medo de buscar a reflexão." - Simon Blackburn
Simon Blackburn, filósofo britânico, veio ao Fronteiras do Pensamento debater o tema As grandes questões da filosofia. Neste excerto de sua conferência ao seminário internacional, ele vai à raiz da filosofia para tratar de conceitos fundamentais à civilização: reflexão, razão, liberdade e educação.A conferência de Blackburn está contida, na íntegra, no livro Pensar a Filosofia, à venda no site da Arquipélago Editorial.
Simon Blackburn | As grandes questões da filosofia
Simon Blackburn |
A filosofia é, segundo creio, aquilo que surge sempre que há reflexão, e seres humanos são necessariamente reflexivos, nós somos conscientes de nós mesmos. Com efeito, temos ideias, mas em seguida pensamos sobre as ideias que temos; usamos palavras, mas nos preocupamos com o que elas significam; valemo-nos de formas de argumento e de modos de formar confiança em ações, em escolhas e em expectativas, mas depois questionamos a correção e a autoridade desses modos de formar confiança. Formulamos questões como: de onde eles vêm? Quais são as alternativas a eles? Eles nos fornecem a verdade? Eles nos conduzem a boas coisas e nos afastam das ruins?
Desde Platão e Aristóteles, desde a tradição clássica grega, o espírito da filosofia tem sido o espírito da reflexão, isso é claramente personificado na simbólica figura de Sócrates tal como desenhada por Platão, a figura do paciente questionador que sabe apenas que nada sabe. Esse é um tipo de imagem da vida filosófica e creio que não seja uma imagem ruim. Mas Sócrates, além da figura do questionador, exemplifica também a coragem que é necessária para defender ideias que outras pessoas pensam que não devem ser defendidas, talvez simplesmente por medo de buscar a reflexão.
Com efeito, quando se reflete, minam-se certezas que poderiam ser necessárias, seja para a igreja, seja para o Estado; assim, há um longo histórico de perseguição à filosofia, e de fato uma das coisas que um regime totalitário busca fazer é trancar ou executar todos os filósofos, exceto, é claro, aqueles que fornecem as palavras que legitimam o regime, a ideologia ou o espírito religioso.
Cabe notar que a reflexão não precisa conduzir ao ceticismo. Ela pode também aumentar nossa confiança; pode, por exemplo, conduzir-nos à confiança na existência de algo que merece ser chamado de liberdade.
A liberdade, segundo creio, reside precisamente na capacidade de pensar duas vezes e de não fazer a primeira coisa que vem à cabeça. Nós manifestamos essa capacidade na nossa habilidade de responder a razões, de incorporá-las ao nosso comportamento, no poder de escutar uns aos outros, de aceitar argumentos, de ser dissuadidos de cursos de ação por pressão dialógica e assim por diante.
Até onde se sabe, animais são incapazes de fazer essas coisas. Trata-se todavia de um ponto controverso, pois pode-se argumentar que cachorros e outros animais superiores pensam. Eles podem eventualmente formular pensamentos do tipo "eu quero aquele osso", e em seguida, "oh, meu dono me disse para não fazê-lo, então vou ficar aqui sentado". Talvez cachorros sejam de fato capazes de autocontrole e talvez pensem, mas meu ponto é que eles não são capazes de muita reflexão, sobre suas vidas, sobre seus pensamentos. Essa é uma capacidade que nos é peculiar.
Fiquei contente de saber que o Brasil é um dos poucos países no mundo em que a filosofia faz parte do currículo escolar obrigatório. Crianças são filósofos naturais. Todavia esse talento é, com frequência, inibido nelas por nós adultos, que dissemos para elas se calarem, para não fazerem certas perguntas e para não se preocuparem com certas coisas. Por conseguinte, as crianças acabam aprendendo a seguir o currículo obrigatório sem fazer perguntas, a resolver as equações e seguir em frente.
Essa supressão do questionamento e do espírito reflexivo é fatal para a educação. Esse ponto pode ser ilustrado por um exemplo tirado da educação da minha filha. Esta é uma história verídica. Minha filha frequentou escolas muito boas e caras em Oxford quando eu ali lecionava.
Um dia, quando tinha por volta de 15 anos, ela se aproximou de mim e disse: "eu cansei de física, eu odeio física, eu odeio ciência, eu não vou mais estudar ciência", e respondi: "mas o que está acontecendo?", e ela: "eu não entendo nada".
O que tinha acontecido na verdade é que eles precisavam resolver um problema relacionado à oscilação do pêndulo; eles deviam resolver uma equação sobre a velocidade do pêndulo na ponta de baixo usando uma equação que envolvia energia potencial, no topo do pêndulo, e energia cinética, na ponta de baixo do pêndulo. É um cálculo bastante simples.
Eu disse: "está bem, e o que você não entendeu?". E ela: "eu não entendi o que é essa coisa que ele chama de energia; o pêndulo no topo não tem energia, ele não está fazendo nada, ele está só ali parado, então por que deveríamos dizer que ele tem energia e que tem energia que se traduz em velocidade?". Ao que respondi: "e você perguntou isso para o professor?", e minha filha disse que sim, que tinha perguntado para o professor, e o que o professor tinha respondido: "resolva a equação e não faça perguntas".
O resultado do diálogo vocês já conhecem, minha filha chegou em casa e disse "eu cansei de ciência, não estudo mais isso", e de fato foi o que ela fez, desistiu de ciência pouco tempo depois.
Eis uma ilustração de como não lecionar, de como não educar pessoas. Pode até ser que as colegas de classe da minha filha que resolveram a equação tenham ido para a universidade e tenham se tornado muito boas em todo tipo de coisa; não nego que essa seja uma maneira de capacitar pessoas a exibir certas habilidades.
Tais pessoas podem certamente vir a se tornar engenheiros, doutores ou algo assim, mas isso não é uma educação, isso não aumenta nosso entendimento das engrenagens do mundo.
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