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Notas:
No
momento da vinda de Jesus, ele estabelecerá um reino de mil anos ou o
reino eterno? Esse assunto divide os cristãos evangélicos. Nenhum
assunto é tão controvertido em teologia do que o Milênio, e nenhum texto
causa mais discussão do que Apocalipse 20.1-10.
Entraremos
nessa discussão acalorada, porém, não querendo aqui imprimir uma
posição intransigente, e até quase fanática, sobre um assunto que diz
respeito ao futuro, e do qual ninguém tem certeza absoluta. Há tanta
controvérsia sobre este assunto que talvez não consigamos achar duas
pessoas que pensem exatamente igual sobre a questão. Há tanta
especulação também, que faz com que seja um dos assuntos mais ingratos a
se tratar em escatologia.
Trataremos
do assunto como precisa ser tratado, ou seja, abordando as principais
visões, e emitindo algumas opiniões sobre cada uma delas, e até mesmo
assumindo uma posição. No entanto, entendemos que é um assunto que não
deveria dividir os cristãos. No final, todos creem que Jesus virá e
estabelecerá um reino eterno. A esperança deste reino não deve diminuir,
quer exista um reino intermediário, quer não.
Correntes Milenistas
Há
basicamente quatro posições em relação ao milênio. São elas: Amilenismo,
Pós-Milenismo, Pré-Milenismo Histórico e Pré-Milenismo
Dispensacionalista.
O termo “Amilenismo”, como diz Hoekema,
“não é muito feliz”[1], porque sugere que não exista um Milênio. Os
amilenistas acreditam no milênio de Apocalipse 20, porém, não acham que
diga respeito a um reino de mil anos literais que Cristo estabelecerá na
terra depois da sua vinda. O Amilenismo entende que o milênio de
Apocalipse 20 já está em atividade nesse momento, pois começou com a
primeira vinda de Jesus e terminará na segunda vinda com a instauração
dos novos céus e nova terra. Por isso, para o Amilenismo, o Milênio não é
literal, mas espiritual.
O
Pós-Milenismo defende que o Milênio também é antes da segunda vinda,
porém, acha que será um tempo de prosperidade e paz advinda da pregação
do Evangelho em todo o mundo. Para o Pós-Milenismo, o mundo ser tornará
gradativamente um lugar muito bom, onde o mal será reduzido ao mínimo e
as nações cooperarão entre si, cristianizando o mundo todo. No final
desta era gloriosa, Satanás será solto, e então, Jesus voltará e o
destruirá.
O
Pré-Milenismo Histórico interpreta literalmente o texto de Apocalipse
20.1-10, e entende que o Milênio será estabelecido na segunda vinda de
Jesus, e será um reino de mil anos sobre a terra, onde o Senhor regerá
as nações com cetro de ferro, minimizará o mal existente, e estabelecerá
uma era de ouro, reinando a partir de Jerusalém. Ao final do Milênio
Satanás será solto e convencerá as nações a fazerem guerra contra
Jerusalém. Então, descerá fogo do céu e consumirá as nações rebeldes. Em
seguida o Senhor estabelecerá o Juízo e o tempo eterno.
O
Pré-Milenismo Dispensacionalista se parece com o Pré-Milenismo Histórico
em sua expectativa por um milênio futuro e literal, porém, se difere em
detalhes específicos. O Dispensacionalismo distingue pelo menos duas
vindas de Jesus, a primeira para o arrebatamento dos salvos, e a segunda
depois de sete anos de tribulação para o estabelecimento do Milênio. No
Dispensacionalismo há um tratamento diferente entre a igreja e Israel.
Mesmo no Milênio estes dois grupos serão distinguidos. O
Dispensacionalismo entende que a igreja é uma espécie de parêntesis na
história de Deus com Israel. Na primeira vinda de Jesus, o Evangelho foi
oferecido aos judeus, mas como eles o rejeitaram, Deus o ofereceu aos
gentios e formou a igreja, porém no fim, voltará a tratar com Israel.
Uma das características principais do Pré-Milenismo, seja Histórico ou
Dispensacionalista é a interpretação literal das passagens do Antigo
Testamento sobre a restauração de Israel, e também do livro do
Apocalipse.
O seguinte quadro nos ajuda a entender as diferenças entre esses quatro sistemas[2]:
Todas as
quatro posições acima têm encontrado defensores capacitados, e qual é a
verdadeira é uma coisa que só saberemos depois da vinda de Jesus. De
qualquer forma, o que pode ser dito brevemente sobre cada uma delas é
que o Pós-Milenismo que esteve muito em voga nos séculos passados,
depois das guerras mundiais e do avanço da fome e das doenças pelo
mundo, caiu em descrédito, uma vez que a sonhada prosperidade parece
estar muito longe. O Pré-Milenismo Dispensacionalista é bastante
recente, e bastante complicado de se explicar. O maior problema dele é a
distinção radical que faz entre Israel e igreja, dividindo a volta de
Jesus e a ressurreição em duas ou três etapas. O Pré-Milenismo Histórico
é mais sóbrio em sua visão, entendendo que haverá apenas uma vinda de
Jesus. O problema desse sistema é o excesso de literalismo. O Amilenismo
é, na nossa opinião, o que faz mais justiça ao ensino bíblico.
O Aprisionamento de Satanás
O texto de Apocalipse 20.1-3 descreve o aprisionamento de Satanás. O texto diz:
“Então, vi descer do céu um anjo; tinha na mão a chave do abismo e uma
grande corrente. Ele segurou o dragão, a antiga serpente, que é o diabo,
Satanás, e o prendeu por mil anos; lançou-o no abismo, fechou-o e pôs
selo sobre ele, para que não mais enganasse as nações até se completarem
os mil anos. Depois disto, é necessário que ele seja solto pouco tempo”.
Primeiramente devemos lembrar que este texto foi escrito para cristãos
no primeiro século. O que significava para eles? Significava que as
coisas não eram como pareciam ser. Enquanto os cristãos morriam
diariamente nos circos e anfiteatros romanos, parecia realmente que
Satanás estava vencendo, mas João escreve para mostrar que as coisas não
são bem assim, elas não são o que parecem ser.
O valente amarrado[3]
Para
entendermos o significado de Apocalipse 20.1-3, precisamos voltar ao
início do ministério de Jesus. Os fariseus acusavam Jesus de expulsar
demônios com o poder do próprio Satanás, por isso Jesus respondeu: “Como pode alguém entrar na casa do valente e roubar-lhe os bens sem primeiro amarrá-lo? E, então, lhe saqueará a casa” (Mt 12.29). A palavra “amarrar” aqui é exatamente a mesma na língua grega usada em Apocalipse 20.2 para “segurar”.
Esta
tarefa de “amarrar” ou “segurar” Satanás começou na primeira vinda de
Cristo. Quando Jesus enviou os 70 discípulos para pregar o Evangelho,
eles voltaram radiantes porque até os demônios lhe eram submissos, então
Jesus disse: “Eu via a Satanás caindo do céu como um relâmpago”
(Lc 10.17-18). Note que a queda de Satanás é associada à pregação do
Evangelho. Do mesmo modo, quando alguns gregos vieram para conversar com
Jesus, ele disse: “Chegou o momento de ser julgado este mundo, e
agora o seu príncipe será expulso. E eu, quando for levantado da terra,
atrairei todos a mim mesmo” (Jo 12.31-32).
É
preciso notar que a palavra “expulsar” no texto grego é exatamente a
mesma de Apocalipse 20.3 onde é traduzida como “lançou”. O mais
importante, porém, é que com a morte de Cristo e a expulsão de Satanás,
Jesus disse que atrairia a si todos os homens. Não apenas judeus, mas
também gregos, romanos, chineses, portugueses, brasileiros, etc. Até a
primeira vinda de Jesus, apenas Israel conhecia o Senhor, sendo que
Satanás prendia as demais nações em ignorância praticamente absoluta.
Mas, com
a vinda do Senhor, o poder do diabo foi drasticamente limitado e ele
agora já não pode mais enganar as nações, pois não pode impedir a
pregação do Evangelho em toda a terra[4]. A única restrição ao Diabo em
Apocalipse 20.3 é que ele não pode mais enganar as nações, portanto, o
amilenismo entende que Apocalipse 20.1-3 narra, não uma prisão futura de
Satanás, mas a restrição que Deus impôs sobre ele com a primeira vinda e
Jesus. Foi graças a este aprisionamento que alguns simples galileus do
primeiro século, em algumas décadas, conseguiram levar o Evangelho a
todo o mundo civilizado.
Hoje,
não há um único país que não tenha algum missionário e muitos
convertidos ao cristianismo. A Bíblia já foi traduzida em mais de mil
línguas. Portanto, o milênio do Apocalipse 20 é a realidade do mundo
atual. Ele começou com a primeira vinda de Cristo. Os 1000 anos do
capítulo 20 correspondem aos 1260 dias das outras partes do livro, ou
seja, o total de anos da dispensação cristã, e é apenas um número
simbólico.
Alguém
pode dizer: mas como Satanás está amarrado se o mundo está desse jeito?
ele está amarrado, mas não completamente impossibilitado de atuar. O que
ele não pode fazer, segundo Apocalipse 20.3 é enganar as nações. É dito
que após o fim do Milênio ele reúne as nações para pelejar contra a
igreja (Ap 20.8). No tempo presente, ele não consegue fazer esse tipo de
movimentação de nações contra o povo de Deus[5], até porque, há nações
que ainda são cristãs. Além disso, deve ser verificado que nosso Senhor e
os Apóstolos empregaram palavras ainda mais fortes do que “prender” ou
“expulsar” para descrever a derrota de Satanás que já aconteceu.
Além dos textos que já vimos acima, podemos citar Hebreus 2.14:
“Visto, pois, que os filhos têm participação comum de carne e sangue,
destes também ele (Jesus), igualmente, participou, para que, por sua
morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo”.
Este texto está dizendo que Jesus destruiu Satanás com sua morte. Esta é
uma expressão bem mais forte do que “prender” ou “lançar no abismo”.
Diante deste texto, alguém pode negar que Satanás já está destruído? Mas
então como ele continua agindo? ele está destruído porque já não tem
qualquer chance de vitória.
Colossenses 2.15 também deixa bem claro que Satanás está totalmente derrotado: “E, despojando os principados e as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz”.
A linguagem deste texto é militar. Paulo está comparando o que Jesus
fez com Satanás e suas hostes, com o que os exércitos romanos faziam com
os vencidos. Naquele tempo, quando um exército vencia o outro, os
perdedores eram despojados de todos os seus bens, e às vezes até das
próprias roupas. Em seguida eram amarrados e obrigados a desfilar pelas
ruas, numa humilhação pública. Jesus despojou Satanás e o humilhou
perante todos com sua morte e ressurreição. Portanto, a expressão
“prendeu por mil anos” pode significar perfeitamente a obra que Jesus
realizou na cruz contra Satanás.
Sequência não-cronológica
Os
Pré-Milenistas interpretam o texto de Apocalipse 20 como acontecendo
depois da volta de Jesus, porque entendem que o capítulo 20 segue
cronologicamente o capítulo 19. Porém, o Apocalipse não é um livro que
deva ser lido em ordem cronológica. Narrando coisas que dizem respeito
ao fim, João freqüentemente volta aos primórdios do Evangelho a fim de
dar o entendimento global da batalha do mal contra o bem.
Ao
chegarmos no capítulo 20 do Apocalipse, já fomos informados como
praticamente todos os inimigos de Cristo encontrarão o seu fim. Mas,
ainda resta um, o pior de todos, Satanás. Sua derrota já foi decretada e
anunciada (12.12), mas não foi ainda explicada, pois João deixou esta
explicação para o final. João já disse que Satanás perdeu seu lugar no
céu, após a batalha com Miguel (Ap 12). O que ele está fazendo no
capítulo 20 é demonstrar como foi realmente essa derrota.
Não podemos entender Apocalipse 20-22 como sendo uma continuação do capítulo 19.
Provavelmente
a maneira mais correta de interpretar o Apocalipse é entendendo que são
descritas sete seções paralelas. É como se João contasse a mesma
história pelo menos sete vezes, porém, cada vez, ele acrescenta detalhes
que não estavam nas descrições anteriores. É somente no último ciclo,
ou seja, quando ele reconta a história pela última vez, que ela fica
completa. A divisão que Hendriksen propõe é a seguinte:
A Primeira Seção: “Cristo no meio dos sete candeeiros” (Ap 1-3).
A Segunda Seção: “A Visão do céu e dos Sete Selos” (Ap 4.1-7.17).
A Terceira Seção: “As Sete Trombetas” (Ap 8-11).
A Quarta Seção: “O Dragão Perseguidor” (Ap 12.2-14.20).
A Quinta Seção: “As Sete Taças” (Ap 15.1-16.21).
A Sexta Seção: “A queda da Babilônia” (Ap 17.1-19.21).
A Sétima Seção: “A Grande Consumação” (Ap 20.1-22.21)[6].
De fato
no capítulo 20 se inicia uma nova seção que vai descrever outra vez a
dispensação cristã como um todo, desde a primeira vinda de Jesus até sua
segunda vinda e o juízo final, como fizeram todas as seis seções ou
ciclos anteriores. Repare que a segunda vinda de Cristo e o julgamento
do mundo haviam sido anunciados em todas as seis seções anteriores.
Veja
como o sexto selo na segunda seção descreve o fim do mundo em cores
vívidas (6.12-17). Da mesma forma na sétima trombeta da terceira seção, a
consumação de todas as coisas é claramente descrita (11.15-19). E este
acontecimento é também descrito em 14.14-20 no final da quarta seção,
com o acréscimo de detalhes de como será a separação entre os crentes e
os ímpios.
Note que
neste texto os crentes são ceifados e recolhidos no celeiro, enquanto
que os ímpios são pisados como se fossem uvas. Assim também o sétimo
flagelo da quinta seção descreve o fim de tudo, mas aqui é pela primeira
vez descrita uma batalha antes do fim, a batalha do Armagedom
(16.12-21). Mas, a explicação mais clara desta batalha está no final da
sexta seção onde o cavaleiro montado no cavalo branco desce para
destruir os exércitos do diabo e dos seus aliados. Portanto, João está
recontando pela sétima e última vez como é a derrota do mal.
É muito
difícil que Apocalipse 20 seja uma descrição do que acontece depois de
Apocalipse 19, pois no capítulo 19 já aconteceu a consumação. Os ímpios
foram vindimados na batalha do Armagedom e os homens rebeldes foram
mortos (19.21). No capítulo 20 a história é recontada a fim de explicar
como será destruído o último inimigo, Satanás, e assim, todos os
detalhes se completam.
Em defesa desta posição Hendriksen mostra o paralelo que há entre os capítulos 11-14 e 20-22 [7]:
Os Santos reinam
Em
seguida, Apocalipse 20.4-6 narra um reinado milenar. Aqueles que seguem
uma abordagem cronológica do capítulo 20, dizem que todos estes
acontecimentos seguem o 19. Então, na segunda vinda de Jesus, Satanás
seria preso, e, em seguida, haveria a primeira ressurreição e os crentes
reinariam com Cristo por mil anos na terra. Depois destes mil anos
haveria a segunda ressurreição somente dos ímpios para o juízo. Nossa
dificuldade com esta interpretação já foi descrita acima. Não cremos que
o capítulo 20 seja uma seqüência do 19, mas que recomeça um novo ciclo.
Vimos que a derrota e a prisão de Satanás já aconteceram na primeira
vinda de Jesus.
Tronos no céu
Mas, há
uma dificuldade ainda maior em pensar que o milênio começa com a
ressurreição dos crentes. João não diz que vê corpos reinando com Cristo
na terra, mas “almas” (Ap 20.4). Ele diz que viu tronos, e sentados
nestes tronos aqueles que têm a autoridade de julgar. Quem estão
assentados nestes tronos? São as almas que João viu. O texto grego não
contém a expressão “vi ainda”, como se fosse um grupo diferente daquele
que está assentado nos tronos. Diz simplesmente: “E as almas dos
decapitados por causa do testemunho de Jesus e da Palavra de Deus,
tantos quantos não adoraram a besta, nem tão pouco a sua imagem, e não
receberam a marca na fronte e na mão; e viveram e reinaram com Cristo
durante os mil anos” (Ap 20.4).
Note que estas almas estão “vivendo” com Cristo e reinando por mil anos. A expressão “e viveram” (no grego ezesan) não significa necessariamente “e ressuscitaram”, até porque a palavra grega “ressuscitaram” é outra (anastásei).
O texto nos diz que as almas dos que morreram estão “vivendo” e
reinando com Cristo por mil anos, que é o tempo inteiro da dispensação
cristã, desde a primeira vinda de Cristo até a segunda vinda. Além
disso, estes tronos certamente devem estar no céu, pois como diz W. J. Grier,
“sempre que se faz referência a tronos, no Apocalipse, quer se trate do
de Cristo, quer dos de Seu povo, são localizados no céu”[8]. (Ver Ap
4.4).E como diz Kistemaker, “o vocabulário de tronos, juízo e almas representa uma cena celestial”[9].
Quando
João diz que os restantes dos mortos não reviveram “até que se
completassem os mil anos” e chama o acontecimento de “viver” de primeira
ressurreição, ele não está dizendo que isso vai acontecer depois do
milênio. Aliás, a palavra “reviveram” é a mesma usada para “viveram” no
verso anterior. O que João quer dizer é que os mortos sem Cristo
continuaram mortos física e espiritualmente, e depois do milênio vão
ressuscitar, mas para entrar na morte eterna. Portanto, a primeira
ressurreição aqui é o “viver” com Cristo no céu.
Os
ímpios não vão “viver” com Cristo no céu até o dia da ressurreição
final. Aquele que tem parte na primeira ressurreição (espiritual) vai
para o céu, e não precisa temer a segunda morte que é o Lago de Fogo.
Nem seria preciso falar algo assim se os cristãos já estivessem com seu
novo corpo aqui na terra. Num resumo: “Os que pertencem a Cristo morrem
uma vez, porém ressurgem duas vezes (espiritual e fisicamente), enquanto
os que o têm rejeitado ressurgem uma vez, porém morrem duas vezes
(física e espiritualmente)”[10].
As
pessoas que João viu no céu (decapitados como Paulo e João Batista)
ascenderam espiritualmente ao céu (primeira ressurreição), e
ressuscitarão fisicamente na vinda de Jesus. As pessoas que morrem sem
Cristo não vão ao céu (não tem parte na primeira ressurreição), mas
ressuscitarão na vinda de Jesus para o grande julgamento.
A situação dos mortos
Um
argumento que reforça esta interpretação vem de outras partes do livro
de Apocalipse. Devemos sempre lembrar que João está escrevendo para
cristãos do primeiro século. Aqueles cristãos estavam sofrendo grandes
perseguições. Muitos já haviam morrido por causa do Evangelho. Era
natural que a igreja se perguntasse: O que aconteceu com os cristãos que
foram martirizados? Deus não vai fazer nada para vingá-los? Em
praticamente todas as seções, João dá informações sobre esses mortos.
No
capítulo 6, ele diz que viu as almas daqueles que tinham sido mortos por
causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam.
Essas almas estavam debaixo do altar de Deus, e clamavam por vingança.
Foi lhes dito que deviam esperar, vestidas de vestiduras brancas, até
que se completasse o número dos mártires (Ver Ap 6.9-11).
No capítulo 7, João dá mais informações sobre os mártires. Ele diz que “se
acham diante do trono de Deus e o servem de dia e de noite no seu
santuário. E aquele que se assenta no trono estenderá sobre eles o seu
tabernáculo. Jamais terão fome, nunca mais terão sede, não cairá sobre
eles o sol, nem ardor algum, pois o Cordeiro que se encontra no meio do
trono os apascentará e os guiará para as fontes da água da vida. E Deus
lhes enxugará dos olhos toda lágrima” (Ap 7.15-17). Ou seja, João
está tentando consolar os amigos e parentes das vítimas, dizendo que
elas estão numa posição privilegiada.
No
capítulo 14, João diz que os mortos no Senhor são “bem-aventurados”,
podem descansar de suas fadigas, pois suas obras os acompanham (Ap
14.13). No capítulo 20, ele torna a ver as almas destes mártires, e
agora acrescenta que além de estarem num estado de bem-aventurança,
estão reinando com Cristo e serão os próprios juízes de seus algozes (Ap
20.4).
Portanto,
na sequência lógica do Apocalipse, este texto não está falando coisa
alguma sobre um reino literal e terreno de Cristo sobre a terra durante
mil anos, mas da situação dos mortos em Cristo no céu, durante todo o
tempo da dispensação cristã.
Como já
vimos, aqueles que reinam com Cristo por mil anos não são pessoas
ressuscitadas fisicamente, mas almas que reinam no céu. Neste ponto, há
mais uma dificuldade para a interpretação pré-milenista que é o fato de
que o texto localiza apenas dois grupos de pessoas que reinam com
Cristo, e são os “decapitados por causa do testemunho de Jesus e os que não adoraram a besta”. Cadê o resto dos crentes mortos?
Além
disso, está falando apenas dos que morreram, e se eles ressuscitaram
fisicamente, onde estão os vivos que serão transformados? Eles não
participam do milênio? Como diz Hoekema, “não há nada dito aqui
acerca de crentes que não morreram, mas ainda estavam vivos quando
Cristo retornou”[11]. Mas quando lembramos que João está querendo
explicar justamente a situação dos mártires, toda dificuldade
desaparece.
Números não literais
A
interpretação literal dos mil anos no texto não se justifica facilmente.
Qualquer pré-milenista sabe, por exemplo, que a corrente que prende
Satanás não é física, é espiritual. Portanto, ninguém interpreta isto
literalmente. Então, por que o número 1000 deve ser interpretado
literalmente? Além disso, porque nessa passagem este número deve ser
interpretado de forma literal, se todos os outros números do Apocalipse
não são? Por exemplo, será que há sete Espíritos Santos, ou apenas um?
(Ap 3.1; 4.5). Será que Jesus é literalmente um Cordeiro que tem sete
chifres e sete olhos? (Ap 5.6). Será que correu sangue pela morte dos
ímpios por 1600 estádios (296 Km)? (Ap 14.20). Será que a Nova Jerusalém
possui 12000 estádios (2219 Km)? (Ap 21.16). Evidentemente que ninguém
interpreta estes números literalmente, pois são claramente simbólicos.
Mas, então por que o número 1000 teria que ser literal em Apocalipse
20.3-4.
Ainda
deve ser considerado que a existência de um milênio literal somente pode
ser deduzida do texto de Apocalipse 20.1-4. Nenhum outro lugar na
Escritura fala em algo parecido. E como já vimos, Apocalipse 20.1-4 não
precisa ser interpretado literalmente. No restante das Escrituras não
existe a menor indicação de um milênio intermediário entre a era atual e
a era eterna. Jesus, nas parábolas (Mt 13.24-30, 36-43, 47-50; Lc
19.11-27; Mt 25.14-30), e na descrição do julgamento em Mateus 25, não
falou de um reino intermediário depois da sua vinda. Ele disse que sua
vinda traria o julgamento e o estado final dos homens. A mesma ideia
pode ser vista em toda a Bíblia. Sempre que o Novo Testamento fala do
futuro não diz que haverá um reino para Israel na Segunda Vinda de
Jesus, mas que quando Jesus voltar, será estabelecido o Novo céu e a
nova terra (2Pe 3.1-13).
A Última Batalha
Em
Apocalipse 20.7-10 há a descrição da rebelião final, onde Satanás reúne
as nações para pelejarem contra o Senhor. Que batalha é esta, se no
capítulo 19 os inimigos de Cristo já foram destruídos? Que nações são
estas cujo número é como a areia do mar, se os homens já foram mortos em
Apocalipse 19.21? Na verdade, não são batalhas diferentes, mas duas
descrições da mesma batalha. É dito que no fim do milênio, Satanás será
solto. Solto de quê? De sua prisão que o incapacitava de enganar as
nações a fim de reuni-las contra a igreja de Deus. Note que ele vai
seduzir as nações nos quatro cantos da terra.
Que esta
é a batalha do Armagedom podemos inferir por causa da referência a
Gogue e Magogue. Gogue era o príncipe de Magogue. É dito em Ezequiel
38.2 que Gogue também é príncipe de Rôs, Meseque e Tubal. Estas três
regiões ficavam em algum lugar onde hoje é a Turquia. E todo este
território foi conquistado depois de Ezequiel pelos selêucidas,
principalmente nos tempos de Antíoco Epifânes o mais cruel inimigo dos
judeus, que foi governador da Síria. Este homem foi o mais perfeito tipo
do Anticristo no Antigo Testamento. Portanto, a referência a Gogue,
nesta última batalha, é uma referência novamente às forças do Anticristo
que tentarão pelejar contra o Cordeiro.
João não
descreve a derrota do Anticristo aqui, porque já a descreveu antes, e
agora ele está interessado em descrever a derrota do Dragão, que na
mesma batalha do Armagedom na única vinda de Cristo, foi também
aprisionado no lago de fogo. O fato de João dizer que a besta e o falso
profeta já estavam no lago de fogo (Ap 20.10) significa apenas que ele
já havia narrado este acontecimento antes, até porque a besta e o falso
profeta são o governo e a religião anticristã de Satanás. João deixou
para narrar no fim, a maneira como o Dragão será destruído.
O Cumprimento das Profecias do AT
Talvez a
maior razão porque os pré-milenistas insistem num reino literal e
terreno de mil anos seja por causa de sua visão das profecias do Antigo
Testamento. Como já dissemos, não há qualquer texto que fale em mil anos
de reino, mas os pré-milenistas olham para as profecias de Isaías,
Ezequiel, Amós, Zacarias e outros, que falam sobre um futuro glorioso
para Israel, e imaginam que isto acontecerá numa volta futura de Israel
das várias nações ao redor do mundo, para a terra da promessa. Pensam
que isto precisa se cumprir literalmente. Nesse sentido, vêem o retorno
de Israel para a Palestina após a Segunda Grande Guerra, como um indício
do cumprimento histórico das
profecias.
A
interpretação amilenista entende que estas profecias se cumpriram
literalmente na volta de Israel do cativeiro da Babilônia, ou se cumprem
espiritualmente na igreja que é o Israel no Novo Testamento, ou ainda
se cumprem no Novo céu e nova terra. Não há a necessidade de um reino
milenar para que elas se cumpram.
Primeiramente
devemos entender que interpretar literalmente todas as profecias do
Antigo Testamento pode conduzir a absurdos. Como nota W. J. Grier,
“a própria profecia do Velho Testamento contém uma advertência contra
tal literalismo. Deus disse que falaria aos profetas do Antigo
Testamento em sonhos e visões e em palavras obscuras (Nm 12.6-8; Os
12.10)”[12]. Por exemplo, quando Ezequiel diz que o povo retornará à sua
terra diz que Davi reinará sobre os que voltarem (Ez 37.24). Se isso
for interpretado de forma literal, Davi precisaria reencarnar para
reinar sobre Israel. E além disso, o que não pode ser esquecido é que
muitas profecias proferidas à nação de Israel eram condicionais.
Por
exemplo, quando Deus chamou o povo de Israel do Egito lhes prometeu uma
nova terra, porém, devido à desobediência deles, foram privados desse
benefício (Nm 14.23). Com relação ao próprio reino eterno da
descendência de Davi, a promessa era condicional. Davi entendeu isso,
pois disse em seu leito de morte ao seu filho Salomão:
"Eu
vou pelo caminho de todos os mortais. Coragem, pois, e sê homem! Guarda
os preceitos do SENHOR, teu Deus, para andares nos seus caminhos, para
guardares os seus estatutos, e os seus mandamentos, e os seus juízos, e
os seus testemunhos, como está escrito na lei de Moisés, para que
prosperes em tudo quanto fizeres e por onde quer que fores; para que o
SENHOR confirme a palavra que falou de mim, dizendo: Se teus filhos
guardarem o seu caminho, para andarem perante a minha face fielmente, de
todo o seu coração e de toda a sua alma, nunca te faltará sucessor ao
trono de Israel." (1Rs 2.2-4).
Do mesmo
modo, as promessas de Deus de prosperidade para a nação de Israel
estavam condicionadas à obediência. Uma vez que a nação não permaneceu
em obediência, Deus não se viu obrigado a cumprir todas as promessas.
Ao
considerar algumas das principais profecias do Antigo Testamento, as
quais são geralmente usadas para a defesa de um Milênio literal e
terrestre, podemos perceber que elas não exigem um cumprimento literal
num Milênio. Uma das principais passagens do Antigo Testamento usadas
para defender o Milênio é Isaías 65.17-25. Neste texto Isaías fala da
restauração de todas as coisas: “Não haverá mais nela criança para
viver poucos dias, nem velho que não cumpra os seus; porque morrer aos
cem anos é morrer ainda jovem, e quem pecar só aos cem anos será
amaldiçoado” (Is 65.20).
Diz que: “A longevidade do meu povo será como a da árvore, e os meus eleitos desfrutarão de todo as obras das suas próprias mãos” (Is 65.22). E diz que naquele tempo:
“O lobo e o cordeiro pastarão juntos, e o leão comerá palha como o boi;
pó será a comida da serpente. Não se fará mal nem dano algum em todo o
meu santo monte, diz o SENHOR” (Is 65.25). Os pré-milenistas dizem
que esta descrição não pode se referir ao tempo eterno porque há
referência a morte e ao pecado. Porém deve ser entendido que Isaías usa
figuras de coisas que os homens podem entender, mas está falando dos
“novos céus e nova terra”, conforme ele deixa bem claro no verso 17.
E o
Apocalipse diz que os novos céus e nova terra compõem o estado final do
universo e não o Milênio. Isaías descreve os tempos eternos em linguagem
que as pessoas daquele tempo podiam entender. Ele usa expressões que
indicam longevidade e prosperidade em linguagem que deve ser entendida
figurada e não literalmente.
Outro
texto bastante usado para a defesa do Milênio é o capítulo 11 de Isaías.
O texto diz que um rebento de Jessé será levantado (vs. 1), o qual terá
sabedoria para reconduzir o povo (vs. 2-5). Neste tempo, “o lobo
habitará com o cordeiro, e o leopardo se deitará junto ao cabrito; o
bezerro, o leão novo e o animal cevado andarão juntos, e um pequenino os
guiará (...) A criança de peito brincará sobre a toca da áspide, e o já
desmamado meterá a mão na cova do basilisco. Não se fará mal nem dano
algum em todo o meu santo monte, porque a terra se encherá do
conhecimento do SENHOR, como as águas cobrem o mar” (vs. 6-9). Esta
também não é uma descrição do Milênio. Ela se parece bastante com a
outra descrição que já vimos acima no capítulo 65, e que Isaías disse
pertencer à nova terra e aos novos céus. Isaías está falando de um tempo
de perfeição, onde a terra se encherá do conhecimento do Senhor. Isso é
muito superior ao que teria que acontecer no Milênio onde ainda haveria
povos dispostos a se rebelar contra o Senhor. Dos versos 10-16 Isaías
fala da restauração de Israel.
Não
podemos entender esta passagem sem lembrar que o povo de Israel foi
levado cativo para a Assíria e o povo de Judá para a Babilônia. Isaías
diz que o povo voltaria para sua terra. Isto de fato se cumpriu 70 anos
depois do cativeiro, quando o povo retornou do Exílio. O verso 16 diz: “Haverá
caminho plano para o restante do seu povo, que for deixado, da Assíria,
como o houve para Israel no dia em que subiu da terra do Egito”. Este verso teve um cumprimento literal no dia em que Israel voltou do cativeiro.
É
evidente que a profecia vai além disso, mas por que pensar num Milênio
intermediário se a profecia pode se referir em linguagem figurada aos
novos céus e nova terra? Como diz Hoekema, “na há razão
obrigatória para entendermos este tipo de passagens do Velho Testamento,
de modo a descrever um reino milenar futuro”13. Estas profecias se
cumprem no retorno de Israel do cativeiro, na primeira vinda de Jesus,
ou finalmente descrevem a nova terra que será estabelecida na segunda
vinda de Jesus [14].
O
próprio Novo Testamento interpreta profecias que descrevem a restauração
de Israel como não literais. Um exemplo basta para perceber isso. Amós
9.11-12 diz: “Naquele dia, levantarei o tabernáculo caído de Davi,
repararei as suas brechas; e, levantando-o das suas ruínas,
restaurá-lo-ei como fora nos dias da antiguidade; para que possuam o
restante de Edom e todas as nações que são chamadas pelo meu nome, diz o
SENHOR, que faz estas coisas”. Em Atos 15.14-18 temos a
interpretação do cumprimento figurado desta profecia. Tiago entende que
se cumpriu quando Deus incluiu os gentios na comunidade do povo de Deus.
Portanto, se o próprio Novo Testamento demonstra que as profecias do
Antigo Testamento não precisam ser cumpridas literalmente, por que nós
deveríamos insistir nisso?
Dificuldades adicionais
Falar
num milênio terreno envolve algumas contradições adicionais: Por que
razão, depois dos crentes terem ressuscitado ainda teriam que viver mil
anos numa terra imperfeita? De certa forma, as coisas não seriam muito
diferentes do que são hoje. Somos convertidos e desejamos uma nova era,
porém ainda temos que sofrer com este mundo decaído. Imagine pessoas já
ressuscitadas ainda tendo que viver numa terra decaída.
Outra
coisa estranha é a idéia de que haverá pessoas com corpo glorificado
vivendo junto com pessoas sem corpo glorificado. Que tipo de
relacionamento poderia existir entre essas pessoas. Umas morrem, outras
são eternas. E como podem as nações se rebelarem contra o Senhor depois
do milênio na soltura de Satanás? Não terá adiantado nada os mil anos de
prosperidade do Senhor na terra? Finalmente, é muito estranha a idéia
de haver salvação depois da vinda do Senhor. Como serão salvos os ímpios
durante o milênio? Eles terão que ouvir o Evangelho e crer?
A Bíblia
diz que fé é acreditar no que não pode ser visto (Hb 11.1), mas naquele
momento todos verão Jesus reinando dum trono terreno em Jerusalém. Isto
seria injusto, se considerarmos que todos os demais que viveram antes
do milênio tiveram que crer com bem menos evidência. Embora não possamos
ser dogmáticos, porque o Senhor conduzirá a história segundo seu
propósito, estas observações demonstram que a existência de um Milênio
literal traz mais complicações do que soluções.
Concluindo,
percebemos que há evidências de sobra para não interpretar o texto de
Apocalipse 20.1-10 de forma literal. Mas insistimos na tese de que este
assunto não deve dividir os cristãos. Ter expectativas diferentes em
relação à segunda vinda é melhor do que não ter expectativa alguma. O
que importa é que ele virá, e que haverá pessoas o aguardando. Quer
naquele momento ele inaugure o milênio, quer inaugure o tempo eterno, de
qualquer maneira, estaremos para sempre juntos com o Senhor.
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Notas:
1 Antony Hoekema. A Bíblia e o Futuro, p. 223.
2 O quadro é retirado de Paul Enns. The Moody Handbook of Theology, Tópico: “Amillennialism”.
3 A exposição a seguir segue em linhas gerais William Hendriksen. Mais Que Vencedores, p. 217-225.
4 Ver Simon Kistemaker. Apocalipse, p. 673-674.
5 Ver W. J. Grier. O Maior de Todos os Acontecimentos, p. 126-127.
6 Ver William Hendriksen. Mais Que Vencedores, p. 26-35.
7 William Hendriksen. Mais Que Vencedores, p. 218.
8 W. J. Grier. O Maior de Todos os Acontecimentos, p. 128.
9 Simon Kistemaker. Apocalipse, p. 675.
10 Simon Kistemaker. Apocalipse, p. 680.
11 Antony Hoekema. A Bíblia e o Futuro, p. 244.
12 W. J. Grier. O Maior de Todos os Acontecimentos, p. 36.
13 Antony Hoekema. A Bíblia e o Futuro, p. 274.
14
Outras passagens que podem ser interpretadas neste sentido sem sugerir a
idéia do Milênio são: Jr 23.3-8; Ez 34.12-13; Ez 36.24; Zc 8.7-8; Am
9.14-15, etc.